domingo, 23 de outubro de 2011

Chico e o Cireneu

"Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe o manto, puseram-lhe as suas vestes, e levaram-no para ser crucificado.
Ao saírem, encontraram um homem cireneu, chamado Simão, a quem obrigaram a levar a cruz de Jesus."
Mateus, Capítulo 27
 
Depois de o terem assim escarnecido, despiram-lhe a púrpura, e lhe puseram as vestes.
Então o levaram para fora, a fim de o crucificarem.
E obrigaram certo Simão, cireneu, pai de Alexandre e de Rufo,
que por ali passava, vindo do campo, a carregar-lhe a cruz.
Marcos, Capítulo 15

Quando o levaram dali tomaram um certo Simão, cireneu, que vinha do campo,
e puseram-lhe a cruz às costas, para que a levasse após Jesus.
Lucas Capítulo 26
 


 
Em 1955, [Chico Xavier] abriu a guarda para um rapaz de 23 anos, vindo de Monte Carmelo com a mãe. Seu nome: Waldo Vieira. Foi afinidade à primeira vista.

O rapaz mostrou a Chico um poema intitulado "Deus", ditado a ele por um espírito anônimo. O autor do Parnaso de Além-Túmulo ficou abismado. Era um soneto alexandrino perfeito.

A surpresa cresceu após outra revelação. Waldo, com metade de sua idade, dizia receber mensagens de um espírito chamado André Luiz, homônimo do autor de Nosso Lar (...).
***
 
Chico estava perplexo. E exultou com o currículo mediúnico do jovem de Monte Carmelo. Espírita desde os seis anos, quando seu pai fundou um centro, Waldo viu a primeira assombração de sua vida aos nove anos. Aos treze, começou a receber os primeiros textos do além. Com o tempo, tornou-se um dos líderes das Mocidades Espíritas. Era perfeito, bom demais para ser verdade. Chico previu a possibilidade de os dois trabalharem juntos. (...) empolgado com a descoberta de uma nova promessa espírita, tratou de apresentar o jovem, em carta, ao presidente da Federação Espírita Brasileira, Wantuil de Freitas. Já em 1957, quando completava trinta anos de serviços prestados a servir de ponte entre este mundo e o outro, Chico defendeu o jovem:

"Apesar de moço ainda, revela-se um companheiro muito abnegado e senhor de um caráter honesto e limpo. Estudioso, amigo, trabalhador. Agora, meu caro Wantuil, que trinta anos consecutivos se passaram sobre minhas singelas atividades mediúnicas, tenho necessidade de sentir alguém comigo, a quem eu possa ir transmitindo recomendações de nossos Benfeitores Espirituais que eu não possa, de pronto, atender ou em cujas mãos possa deixar alguns deveres preciosos, na hipótese de qualquer necessidade."

Chico estava cansado. Um parceiro viria a calhar. Ainda faltavam três livros para ele honrar o compromisso assumido com Emmanuel e concluir a segunda série de trinta títulos. As sessões de Pedro Leopoldo eram exaustivas
(...). A chegada de Waldo Vieira poderia aliviar tanto estresse.
 
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Emmanuel também parecia estar bem informado sobre o futuro próximo. Em 1957, Chico ouviu o aviso: André Luiz ditaria um novo livro, o sexagésimo. Parecia tão ansioso quanto Chico para concluir logo a tarefa. Tão apressado que convidou Waldo Vieira a dividir o serviço com o autor do Parnaso de Além-Túmulo. Por quê? A resposta, segundo Emmanuel, viria no ano seguinte. Por enquanto, os dois deveriam apenas escrever.

A dobradinha espírita mais pródiga do espiritismo no Brasil começou com Evolução em Dois Mundos. O método de trabalho da dupla era insólito. Waldo Vieira, um jovem de 27 anos, recém-formado em medicina e odontologia, enviava de Uberaba para Pedro Leopoldo, aos cuidados de Chico, 47 anos e curso primário incompleto, os capítulos ímpares do livro um resumo da história da alma humana repleto de termos médicos. Chico dava seqüência ao texto com os capítulos pares. A fusão dos artigos era surpreendente. Impossível afirmar quem escreveu qual parte. Em julho de 1958, o livro número sessenta já estava no prelo.
 
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(...) Em uma carta a Wantuil de Freitas, no dia 10 de dezembro, [Chico Xavier] destacou Waldo Vieira como alguém capaz de livra-lo "dos perigos que rondam a tarefa".
 
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No meio da noite de 4 de janeiro de 1959, Chico Xavier bateu a porta de casa e sumiu. (...) Não se despediu de ninguém. Com a roupa do corpo, tomou o rumo de Uberaba. Levou apenas o velho caderno de endereços e telefones. Iria morar com Waldo Vieira.
 
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Chico Xavier se refugiou no meio do mato a oito quilômetros do centro de Uberaba. Sua casa, que dividia com Waldo Vieira, era um barraco. Quarto, sala, cozinha, banheiro, chão de cimento, paredes sem pintura. Nenhum ônibus passava por ali. (...) Quem quisesse chegar até o porta-voz dos mortos no Brasil precisava atravessar o matagal, driblar bois e vacas, pular cercas de arame farpado. Sem telefone, com os parentes a seiscentos quilômetros de distância, (...), às vésperas da aposentadoria, Chico experimentava a privacidade e tomava fôlego para recomeçar. Precisava chegar ao centésimo livro. Agora, pelo menos, já tinha um parceiro.
 
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Livre, às vésperas de completar cinqüenta anos, ele se revelava um contador de "causos" inspirado. Eça de Queiroz aprovaria. Olina, no início desconfiada, terminou a noitada às quatro horas da manhã, exausta de tanto rir. As histórias se sucediam e as gargalhadas também. Waldo Vieira, mais sério, preferia o silêncio e certa distância. (...) Chico ria das superstições alheias e também falava sério. De história em história, ele envolvia as visitas, dava o seu recado. (...). Waldo leu o Evangelho, pediu licença e foi dormir.
 
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Às terças e quintas-feiras, Chico e Waldo calavam a boca, fechavam as portas de casa e se dedicavam a um novo livro assinado por André Luiz, o primeiro da nova série de quarenta necessários para atingir o centésimo título. Os capítulos ímpares eram escritos por Waldo, os pares, por Chico. O texto tentava traduzir, de forma científica, os "Mecanismos da Mediunidade".
 
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No dia 18 de abril de 1959, Chico e Waldo Vieira inauguravam, ao lado da casa deles, a Comunhão Espírita Cristã. Nenhum deles assumiu a presidência do centro. Precisavam escrever. Dalva Rodrigues Borges, uma espírita de Uberaba, assumiu o comando. A programação do novo centro era intensa: reuniões públicas às segundas, sextas e sábados, sessões de desobsessão privadas às quartas-feiras, sopas para os pobres todas as tardes, peregrinações pelos bairros da periferia aos sábados, além de cursos sobre o Evangelho.
 
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Chico Xavier e Waldo Vieira saíam das sessões públicas e, ao chegarem em casa, costumavam datilografar os textos ditados pelos "benfeitores espirituais". Tinham muito trabalho pela frente: ainda estavam longe do centésimo livro. Numa dessas jornadas noturnas, um besouro caiu sobre a máquina do companheiro de Chico. Waldo atirou o inseto com força na parede. O bicho voou e tornou a cair sobre sua mesa. Waldo arremessou o recalcitrante com violência contra o chão. Mais uma vez, ele levantou vôo. Dessa vez, aterrissou no lugar certo: a mesa de Chico.

Com cuidado, o companheiro de Waldo pegou o inseto, abriu a janela e o soltou lá fora enquanto comentava:

- Besouro, se você não conseguiu desencarnar através de Waldo, é porque você é como eu: tem uma missão a cumprir no mundo. Vá com Deus.

Waldo olhava torto para o sentimentalismo de Chico.
 
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Em noites de casa cheia, Chico ficava até meia-noite confinado. Quando voltava para a mesa, os espectadores só faltavam aplaudir, não só por sua presença, mas pelo fim dos comentários evangélicos. A presidente do centro pedia silêncio, meditação, prece. Chico fechava os olhos, segurava o lápis e as frases se espalhavam pelo papel. Waldo em geral o acompanhava no dueto do além. Às vezes, quando um parava, o outro começava, e os dois produziam textos complementares assinados pelo mesmo "autor".
 
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O dueto com Waldo Vieira iria gerar a Antologia dos Imortais. Ainda faltavam 27 livros para chegar ao título número cem. Chico assinava os capítulos ímpares, Waldo, os pares.
 
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Em junho de 1964, Chico, com o aval de Emmanuel e com o apoio de Waldo Vieira, decidiu ceder à Comunhão Espírita Cristã os direitos de livros escritos por ele e seu parceiro. Pela primeira vez, ele seria beneficiado, embora indiretamente. O centro, cada vez maior, contraía dívidas e já não podia contar apenas com a ajuda esporádica e voluntária de amigos ricos e de gente grata a Chico Xavier.
 
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Os generais tomavam conta do país e Chico Xavier, com a ajuda do jovem Waldo Vieira, promovia mais uma distribuição de Natal. No dia 13 de janeiro de 1965, uma fila de 11.765 pessoas se estendeu diante da Comunhão Espírita para buscar sacolas com roupas e alimentos. Com a ajuda de seus amigos de São Paulo e de outros estados, conseguiram arrecadar 8.337 peças de roupas, 993 pares de sapatos, 311 enxovais infantis, 1.926 brinquedos, 4.320 lápis, 500 livros, 335 sacas de arroz, 218 quilos de balas, 11.815 sanduíches.
 
Eram raros os que agradeciam ao receber as doações.
 
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Chico e Waldo começaram a arrumar as malas para viajar ao exterior.

Em maio de 1965, os dois embarcaram para os Estados Unidos. Já era hora de levar o espiritismo segundo Kardec aos americanos. Acompanhados por dois amigos, Maria Aparecida Pimental e Irineu Alves, eles chegaram a Washington na tarde de 22 de maio, um sábado. No dia seguinte, visitaram um templo espírita na cidade para agradecer ao plano espiritual pela chance da viagem. Sem aviso prévio, foram até o The Church of Two Worlds (A Igreja dos Dois Mundos), dirigido pelo médium Gordon Burroughs.
 
 
Eram 15h. Eles se sentaram no último banco e ficaram em silêncio, acompanhando as preces, cânticos e comentários sobre a doutrina. Ninguém os conhecia ali.

No final da reunião, uma senhora indicou os quatro "irmãos de outro país" ali presentes e falou sobre a tarefa deles nos Estados Unidos: levar a renovação espiritual e estimular a aproximação fraterna. Logo depois, em transe, anunciou a presença dos espíritos de um teacher e um doctor junto aos visitantes brasileiros. Chico e Waldo já tinham percebido a companhia de Emmanuel e de André Luiz.

Em julho, Waldo Vieira colocou no papel um texto com a assinatura do doctor.

"Pontos fundamentais para o espírita em viagem". Era uma cartilha para kardecistas que viajassem para o exterior pela primeira vez. Os conselhos, assinados por André Luiz, pareciam ter sido escritos por Chico Xavier. Para início de conversa, a palavra estrangeiro deveria ser riscada do dicionário: "Os filhos de outros povos devem ser tratados como verdadeiros irmãos". Era preciso fugir da exibição pessoal, guardar discrição e simplicidade, evitar críticas e discussões, anedotas e aforismos de mau gosto, além de comparações pejorativas capazes de humilhar os anfitriões. Para ser mais útil, cada um deveria estudar a língua e os costumes do país visitado.
 
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Chico e Waldo saíram dos Estados Unidos e aterrissaram na França. Chico, é claro, fez questão de visitar o túmulo de Allan Kardec, no cemitério Père Lachaise.
 
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Nessa primeira viagem, Chico e Waldo lançaram sementes kardecistas no exterior. No ano seguinte, eles voltaram aos Estados Unidos para fiscalizar a plantação.
 
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Chico Xavier chegou a Uberaba (...) com uma outra novidade também surpreendente: estava sozinho. Waldo Vieira tinha ido para o outro lado do mundo, o Japão. Iria fazer um curso de pós-graduação em plástica e cosmética em Tóquio. Meses depois, ele voltaria para a Comunhão Espírita Cristã apenas para arrumar as malas e sumir do mapa em direção ao Rio, onde abriria um consultório.

Chico Xavier garantia estar conformado com a separação. E previa em entrevistas na época: "Waldo será invariavelmente o médico humanitário e o abnegado missionário da doutrina espírita que todos nós conhecemos."

Errou em cheio.

Após deixar sua assinatura ao lado da de Francisco Cândido Xavier em dezessete livros, o "médico humanitário" virou as costas para o espiritismo, "estreito demais", e seguiu carreira solo. Estava cansado de Chico, "tão frágil, tão suscetível, tão chorão", estava cansado da sacralização em torno de seu parceiro e do "populismo" das sopas diárias, das peregrinações semanais e das distribuições natalinas.

Queria distância da culpa cristã, da caridade, das lições evangélicas. Ele não iria se conformar, não iria agradecer a Deus por seus sofrimentos, não viveria atrelado a guias espirituais, não se submeteria a ser um eterno datilógrafo de textos do além.

Waldo abandonou a doutrina espírita e definiu sua saída da Comunhão como "uma benção". Leitor voraz, dono de uma biblioteca com 60 mil exemplares, ele fundaria não uma seita, mas uma ciência batizada de "projeciologia". Iria estudar as projeções de consciência, as experiências fora do corpo físico. Em 1986, lançaria um livro sobre o assunto - um calhamaço de mil páginas coberto por 1.907 citações extraídas de mais de 5.500 títulos específicos.

Os cientificismos de André Luiz, no complexo Mecanismos da Mediunidade, são até bastante acessíveis se comparados à linguagem usada no mundo novo de Waldo. Tanto que ele lançaria um "miniglossário da conscienciologia" para quem quisesse entender seu dialeto. (...)

Nesse universo sofisticado, a mediunidade é considerada um "pré-maternal, uma bobagem", o espiritismo não passa de uma superstição e Kardec já está superado.

A pessoa capaz de projetar a própria consciência estaria anos-luz à frente do médium. A projeciologia eliminaria o intermediário, o atravessador. Se uma pessoa quisesse entrar em contato com o "espírito", por exemplo, bastaria sair conscientemente de seu corpo físico e procurar seu morto em outra dimensão. Ou seja: a mãe, arrasada com a morte de seu filho, poderia fazer um curso de projeciologia, treinar bastante e ir para o espaço. Haveria o risco de ela se perder no meio do caminho.

- Mas quem não corre riscos? pergunta Waldo.

Quase 27 anos após se tornar um dissidente de Chico Xavier, Waldo só interromperia os ataques para confirmar: Emmanuel e André Luiz existem mesmo. A mediunidade e a psicografia são reais.

Chico Xavier seria um "completista", segundo termo inventado por André Luiz. Ou seja: cumpriu à risca a programação traçada no outro mundo para ele.

Com longas barbas brancas e seu discurso demolidor, Waldo Vieira seria acusado por vários espíritas de estar cercado de espíritos obsessores. Ao saber das acusações, ele se limitaria a gargalhar.

- Eu ameaço o espiritismo. Eu acabo com os atravessadores.

Os espíritas mais indignados chegaram a prever a "desencarnação" do ex-médium.

Ele teria traído sua missão e poderia pagar por isso. Waldo provocaria:

- Eu só tenho medo do espírito obsessor do cachorro do vizinho.
 
***

Desde a separação, Waldo Vieira nunca mais se encontrou com o antigo parceiro.

Em 1991, tentou conversar com ele. Os auxiliares de Chico afastaram-no com uma desculpa: Chico estava viajando. O "completista" preferiu ficar em casa, sozinho, recolhido em seu quarto, escrevendo.

Tinha mais o que fazer.

Em 1967, Chico lutava para atingir o centésimo livro e encerrar a maratona literária. Estava exausto. Logo após a separação, colocou no papel o livro Encontro Marcado, assinado por Emmanuel. Uma coletânea de conselhos bastante úteis para quem, como ele, sofria com mais um desencontro na vida. Uma das frases era consoladora: "A pedra que acidentalmente nos fira será provavelmente a peça que sustentará a segurança da construção".

As vidas de Chico Xavier
Marcel Souto Maior
2ª edição revista e ampliada
São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003

4 comentários:

  1. Achei que não tinha Centro espírita em Palmares. Que bom! Resta só saber onde fica.

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  2. Veja as tertúlias do sr Waldo, a cada dia mais vazia, a cada dia seus adeptos vão caindo fora ao perceberem o erro, só ficam aqueles que o endeuzam.

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  3. o PROF WALDO VIEIRA É UM CONSCIENCIA DE ELEVADISSIMO PADRÃO, ASSIM COMO O CHICO XAVIER.AMBOS TRILHARAM CAMINHOS DIFERENTES DE UM MESMO OBJETIVO: CONHECER A ALMA HUMANA PARA ALÉM DESTA EXPERIÊNCIA CORPÓREA E ENTENDER O SIGNIFICADO DA PALAVRA EVOLUÇÃO INTEGRAL. NÃO CABE CRÍTICA NEM COMPARAÇÃO, UMA VEZ QUE CADA UM ESCOLHEU UM CAMINHO IGUALMENTE VÁLIDO!

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    1. Olá Dra Eliane, o Dro Waldo Vieira dessomou, eu também acredito que não se deve criticar as pessoas por suas escolhas e seus caminhos igualmente válidos, mas não dá pra esquecer que o Dr Waldo vivia atacando o Chico Xavier em suas tertúlias "evoluciológicas" . Veja bem assista ao pinga fogo onde o Chico foi questionado sobre Waldo e nem nesse momento o Chico sitou qualquer coisa a respeito nem o nome do Dr Waldo ele sitou. São Pessoas muito diferentes. eu gosto da Projeciologia da Conscineciogia, gosto do Dr Waldo, mas o Chico Xavier foi mais que tudo isso ele foi um grande exemplo.

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