"Nem  queirais ser chamados guias; porque um só é o vosso Guia, que é o Cristo. Mas o  maior dentre vós há de ser vosso servo. Qualquer, pois, que a si mesmo se  exaltar, será humilhado; e qualquer que a si mesmo se humilhar, será exaltado."
Jesus  (Mateus, capítulo 23)
"E, para  que me não exaltasse demais pela excelência das revelações, foi-me dado um  espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim  de que eu não me exalte demais; acerca do qual três vezes roguei ao Senhor que  o afastasse de mim; e ele me disse: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.
"Por isso,  de boa vontade antes me gloriarei nas minhas fraquezas, a fim de que repouse  sobre mim o poder de Cristo.
"Pelo que  sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições,  nas angústias por amor de Cristo. Porque quando  estou fraco, então é que sou forte.
2ª carta de  Paulo aos coríntios
"Os críticos esmiuçavam os poemas e as crônicas  escritos por Chico Xavier, e o juiz estudava o processo Humberto de Campos,  quando a dupla David Nasser-Jean Manzon desembarcou em Pedro Leopoldo. O  repórter e o fotógrafo mais ousados e mais temidos da revista O Cruzeiro  chegaram à cidade dispostos a "desvendar  o homem Chico Xavier". Missão quase impossível: a privacidade do autor  do Parnaso de Além-Túmulo era preservada por um círculo fechado de amigos.  Durante o processo na justiça, a vigilância tinha sido redobrada. Fotos, por  exemplo, só eram permitidas em sessões públicas no centro espírita.
"O desafio era um estímulo. Nasser e Manzon iriam  romper o cerco. Mas começaram mal: foram direto para a Fazenda Modelo e deram  de cara com Rômulo Joviano. O pedido da entrevista foi negado com um não  inflexível.
"Chico está exausto e precisa descansar.
"Jean Manzon, sempre irônico, sugeriu ao patrão do  rapaz umas férias para seu empregado. Como troco, recebeu mais uma resposta  atravessada:
"- O Chico funcionário nada tem a ver com o outro  Chico.
"Se quisessem mesmo fazer a entrevista, os jornalistas  do Rio teriam de esperar até a sessão pública da sexta-feira seguinte. Era  sábado. A dupla tinha mais o que fazer. Não podia ficar plantada na cidade  mineira uma semana à espera do matuto. Aqueles caipiras não sabiam com quem  estavam lidando.
"Nasser e Manzon mereciam respeito. Saíram do Rio a  bordo do avião do próprio Assis Chateaubriand, dono do império dos Diários  Associados, foram recepcionados em Belo Horizonte por Juscelino Kubitschek e  engoliram poeira uma hora e meia seguida na viagem de carro de Belo Horizonte  até ali. Ou seja: a hipótese de voltar à redação da revista com as mãos  abanando era inadmissível.
"Para liquidar o assunto de vez, David Nasser, Jean  Manzon e o piloto do avião de Chateaubriand, Henrique Natividade, bolaram um  plano infalível. Nasser e Manzon se apresentariam como repórteres americanos e  Natividade faria o papel de intérprete da dupla. Chico ficaria seduzido pela  idéia de ser notícia internacional e se sentiria mais à vontade diante dos  estrangeiros. Afinal de contas, a reportagem seria lida longe dali, longe do  Rio.
"Havia um porém: Rômulo Joviano. O engenheiro  conhecia a identidade deles e podia desmascarar o trio a qualquer momento.  Precisavam concluir o serviço antes da chegada do patrão de Chico. Mas, mesmo  sendo rápidos, eles ainda corriam perigo. E se Rômulo telefonasse para alertar  o empregado? Nasser, Manzon e Natividade tomaram a decisão: cortariam o fio do  telefone do entrevistado. Dito e feito.
"O truque deu certo. Chico escancarou as portas de  casa para os "estrangeiros"  e posou para fotos então inéditas na imprensa. Jean Manzon fez a festa. Uma das  fotografias estampadas em O Cruzeiro, a revista de maior circulação no país da  época, exibia o representante do ilustre e saudoso Humberto de Campos sentado  numa banheira, com a mão esquerda sobre a testa, como se estivesse em transe  mediúnico. Só faltava estar nu. A imagem se espalhou por meia página da  publicação no dia 12 de agosto, onze dias antes da sentença do juiz. A legenda  era espalhafatosa: Sensacional flagrante de Chico na banheira. Ele procurava as  almas, quando Jean Manzon o surpreendeu obtendo um impressionante documento  para o próximo julgamento.
"Os adversários do espiritismo afirmam que é uma  prova de farsa. Os espíritas, que é outra prova: o espírito desce seja onde  for.
"Outro "flagrante"  exibia Chico deitado em sua cama estreita, com um livro aberto nas mãos. A  legenda: "Ele lê e muito. Dizia-se  Humberto de Campos, o escândalo que Chico é um ignorante, analfabeto, pouco  amante das belas- letras. Pura invenção. Chico lê tanto que um dos seus olhos  foi atingido por cruel catarata inoperável. Mesmo assim continua lendo".
"O rapaz também se expôs diante da escrivaninha, com  lápis em punho, em meio a um amontoado de livros, O texto abaixo da foto era  comprometedor para quem estava sob suspeita de imitar o estilo alheio: Outra  peça de notável valor documental é esta: a biblioteca de Chico, onde  encontramos livros de muitos autores, escritos na vida de seus criadores. Esses  mesmos cavalheiros transmitem, segundo Chico, novas e diárias mensagens. Chico,  na gravura, aparece copiando trechos de livros que mais lhe agradam.
"As frases abaixo de um rapaz de olhos fechados  aumentavam o mistério: Nos momentos de transe, os seus olhos se fecham ou se  tornam nublados, como os de um morto. Dizem os adeptos de Kardec que a alma  chegou. Dizem os céticos que é um caso médico. De qualquer forma, é  impressionante ver aquele homem de pupilas brancas. Que dirão os juízes?
"O texto de David Nasser, intitulado "Chico, Detetive do Além", era bem  menos contundente do que as imagens e legendas.
"Logo no início, ele tratava de quebrar as  expectativas do leitor: O senhor, leitor amigo, chegará ao fim destas linhas  sem obter a resposta que há tanto tempo procura: "É Chico Xavier um impostor ou não é?" E dirá: "Dei 1.500 por esta revista e não consegui  desvendar o mistério?" Sim, o mistério continuará por muito tempo.
"Após definir seu objetivo, mostrar o homem Chico,  ele cobriu o rapaz de adjetivos: adorável, cândido, maneiroso, humilde, um anjo  de criatura.
(...)
"Após uma hora e meia de entrevista, Jean Manzon,  David Nasser e o "intérprete"  se despediram do entrevistado. Enganaram o "idiota" e ainda ganharam livros de presente.
"Jogaram os exemplares na mala e saíram às pressas,  eufóricos. No dia seguinte, estavam no Rio.
"A reportagem foi publicada no dia 12 de agosto com  uma lacuna estranha. Ela não mencionou como os jornalistas conseguiram passar o  vidente para trás. Nasser jogou fora a chance de lançar a dúvida: Se Chico tem  um guia e tem acesso aos espíritos, como foi enganado tão facilmente?
"Chico leu o texto e ficou apavorado, O juiz não  teria dúvidas. O rapaz já imaginava o veredicto: todos os indícios levam a crer  que Francisco Cândido Xavier imitou o estilo de Humberto de Campos. Culpado.  Sacudia-se, em meio à violenta crise de choro, quando Emmanuel voltou. Estava  inspirado:
"- Chico, você tem que agradecer. Jesus foi para a  cruz e você foi só para O Cruzeiro.
"O réu não conseguiu achar graça. Por que Emmanuel  não evitou aquele vexame?
"Por que não desmascarou a fraude e revelou a  identidade dos jornalistas?
"Só trinta anos depois, uma reportagem publicada por  O Dia, em 28 de abril, e assinada por João Antero de Carvalho, revelaria, em  detalhes, os bastidores daquela saga de David Nasser e Jean Manzon. A confissão  foi feita por um Nasser arrependido, o mesmo capaz de definir Chico Xavier como  "o maior remorso da minha vida".
"O repórter voltou no tempo e reconstituiu a noite  em que passava para o papel seu furo jornalístico, dois dias depois do encontro  com Chico Xavier. Já era madrugada, quando ele foi interrompido por um  telefonema de Jean Manzon. O fotógrafo parecia nervoso.
"- David, você trouxe aquele livro que o homem nos  ofereceu?
"- Claro que sim.
"- Pois bem, abra-o na primeira página e leia a  dedicatória. Nasser largou o telefone fora do gancho e, curioso, correu à  procura de seu exemplar. Levou um susto ao deparar com a frase:
"Ao irmão  David Nasser, oferece Emmanuel".
"Que negócio é esse, Manzon, alguém revelou nossa identidade?
"O fotógrafo e o motorista também foram pegos de  surpresa. Diante do mistério, os três fizeram um pacto de silêncio. A  reportagem saiu sem aquele episódio.
"Segundo Nasser, a verdade, em jornalismo, era menos  importante do que a verossimilhança."
Marcel Souto Maior
As vidas de Chico Xavier
2ª  edição revista e ampliada.
São  Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003