quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Evangelho Segundo Chico Xavier - Espinhos na Carne

"Nem queirais ser chamados guias; porque um só é o vosso Guia, que é o Cristo. Mas o maior dentre vós há de ser vosso servo. Qualquer, pois, que a si mesmo se exaltar, será humilhado; e qualquer que a si mesmo se humilhar, será exaltado."

Jesus (Mateus, capítulo 23)

"E, para que me não exaltasse demais pela excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de que eu não me exalte demais; acerca do qual três vezes roguei ao Senhor que o afastasse de mim; e ele me disse: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.

"Por isso, de boa vontade antes me gloriarei nas minhas fraquezas, a fim de que repouse sobre mim o poder de Cristo.

"Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco, então é que sou forte.

2ª carta de Paulo aos coríntios

Capítulo 12

 

"Os críticos esmiuçavam os poemas e as crônicas escritos por Chico Xavier, e o juiz estudava o processo Humberto de Campos, quando a dupla David Nasser-Jean Manzon desembarcou em Pedro Leopoldo. O repórter e o fotógrafo mais ousados e mais temidos da revista O Cruzeiro chegaram à cidade dispostos a "desvendar o homem Chico Xavier". Missão quase impossível: a privacidade do autor do Parnaso de Além-Túmulo era preservada por um círculo fechado de amigos. Durante o processo na justiça, a vigilância tinha sido redobrada. Fotos, por exemplo, só eram permitidas em sessões públicas no centro espírita.

"O desafio era um estímulo. Nasser e Manzon iriam romper o cerco. Mas começaram mal: foram direto para a Fazenda Modelo e deram de cara com Rômulo Joviano. O pedido da entrevista foi negado com um não inflexível.

"Chico está exausto e precisa descansar.

"Jean Manzon, sempre irônico, sugeriu ao patrão do rapaz umas férias para seu empregado. Como troco, recebeu mais uma resposta atravessada:

"- O Chico funcionário nada tem a ver com o outro Chico.

"Se quisessem mesmo fazer a entrevista, os jornalistas do Rio teriam de esperar até a sessão pública da sexta-feira seguinte. Era sábado. A dupla tinha mais o que fazer. Não podia ficar plantada na cidade mineira uma semana à espera do matuto. Aqueles caipiras não sabiam com quem estavam lidando.

"Nasser e Manzon mereciam respeito. Saíram do Rio a bordo do avião do próprio Assis Chateaubriand, dono do império dos Diários Associados, foram recepcionados em Belo Horizonte por Juscelino Kubitschek e engoliram poeira uma hora e meia seguida na viagem de carro de Belo Horizonte até ali. Ou seja: a hipótese de voltar à redação da revista com as mãos abanando era inadmissível.

"Para liquidar o assunto de vez, David Nasser, Jean Manzon e o piloto do avião de Chateaubriand, Henrique Natividade, bolaram um plano infalível. Nasser e Manzon se apresentariam como repórteres americanos e Natividade faria o papel de intérprete da dupla. Chico ficaria seduzido pela idéia de ser notícia internacional e se sentiria mais à vontade diante dos estrangeiros. Afinal de contas, a reportagem seria lida longe dali, longe do Rio.

"Havia um porém: Rômulo Joviano. O engenheiro conhecia a identidade deles e podia desmascarar o trio a qualquer momento. Precisavam concluir o serviço antes da chegada do patrão de Chico. Mas, mesmo sendo rápidos, eles ainda corriam perigo. E se Rômulo telefonasse para alertar o empregado? Nasser, Manzon e Natividade tomaram a decisão: cortariam o fio do telefone do entrevistado. Dito e feito.

"O truque deu certo. Chico escancarou as portas de casa para os "estrangeiros" e posou para fotos então inéditas na imprensa. Jean Manzon fez a festa. Uma das fotografias estampadas em O Cruzeiro, a revista de maior circulação no país da época, exibia o representante do ilustre e saudoso Humberto de Campos sentado numa banheira, com a mão esquerda sobre a testa, como se estivesse em transe mediúnico. Só faltava estar nu. A imagem se espalhou por meia página da publicação no dia 12 de agosto, onze dias antes da sentença do juiz. A legenda era espalhafatosa: Sensacional flagrante de Chico na banheira. Ele procurava as almas, quando Jean Manzon o surpreendeu obtendo um impressionante documento para o próximo julgamento.

"Os adversários do espiritismo afirmam que é uma prova de farsa. Os espíritas, que é outra prova: o espírito desce seja onde for.

"Outro "flagrante" exibia Chico deitado em sua cama estreita, com um livro aberto nas mãos. A legenda: "Ele lê e muito. Dizia-se Humberto de Campos, o escândalo que Chico é um ignorante, analfabeto, pouco amante das belas- letras. Pura invenção. Chico lê tanto que um dos seus olhos foi atingido por cruel catarata inoperável. Mesmo assim continua lendo".

"O rapaz também se expôs diante da escrivaninha, com lápis em punho, em meio a um amontoado de livros, O texto abaixo da foto era comprometedor para quem estava sob suspeita de imitar o estilo alheio: Outra peça de notável valor documental é esta: a biblioteca de Chico, onde encontramos livros de muitos autores, escritos na vida de seus criadores. Esses mesmos cavalheiros transmitem, segundo Chico, novas e diárias mensagens. Chico, na gravura, aparece copiando trechos de livros que mais lhe agradam.

"As frases abaixo de um rapaz de olhos fechados aumentavam o mistério: Nos momentos de transe, os seus olhos se fecham ou se tornam nublados, como os de um morto. Dizem os adeptos de Kardec que a alma chegou. Dizem os céticos que é um caso médico. De qualquer forma, é impressionante ver aquele homem de pupilas brancas. Que dirão os juízes?

"O texto de David Nasser, intitulado "Chico, Detetive do Além", era bem menos contundente do que as imagens e legendas.

"Logo no início, ele tratava de quebrar as expectativas do leitor: O senhor, leitor amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a resposta que há tanto tempo procura: "É Chico Xavier um impostor ou não é?" E dirá: "Dei 1.500 por esta revista e não consegui desvendar o mistério?" Sim, o mistério continuará por muito tempo.

"Após definir seu objetivo, mostrar o homem Chico, ele cobriu o rapaz de adjetivos: adorável, cândido, maneiroso, humilde, um anjo de criatura.

(...)

"Após uma hora e meia de entrevista, Jean Manzon, David Nasser e o "intérprete" se despediram do entrevistado. Enganaram o "idiota" e ainda ganharam livros de presente.

"Jogaram os exemplares na mala e saíram às pressas, eufóricos. No dia seguinte, estavam no Rio.

"A reportagem foi publicada no dia 12 de agosto com uma lacuna estranha. Ela não mencionou como os jornalistas conseguiram passar o vidente para trás. Nasser jogou fora a chance de lançar a dúvida: Se Chico tem um guia e tem acesso aos espíritos, como foi enganado tão facilmente?

"Chico leu o texto e ficou apavorado, O juiz não teria dúvidas. O rapaz já imaginava o veredicto: todos os indícios levam a crer que Francisco Cândido Xavier imitou o estilo de Humberto de Campos. Culpado. Sacudia-se, em meio à violenta crise de choro, quando Emmanuel voltou. Estava inspirado:

"- Chico, você tem que agradecer. Jesus foi para a cruz e você foi só para O Cruzeiro.

"O réu não conseguiu achar graça. Por que Emmanuel não evitou aquele vexame?

"Por que não desmascarou a fraude e revelou a identidade dos jornalistas?

"Só trinta anos depois, uma reportagem publicada por O Dia, em 28 de abril, e assinada por João Antero de Carvalho, revelaria, em detalhes, os bastidores daquela saga de David Nasser e Jean Manzon. A confissão foi feita por um Nasser arrependido, o mesmo capaz de definir Chico Xavier como "o maior remorso da minha vida".

"O repórter voltou no tempo e reconstituiu a noite em que passava para o papel seu furo jornalístico, dois dias depois do encontro com Chico Xavier. Já era madrugada, quando ele foi interrompido por um telefonema de Jean Manzon. O fotógrafo parecia nervoso.

"- David, você trouxe aquele livro que o homem nos ofereceu?

"- Claro que sim.

"- Pois bem, abra-o na primeira página e leia a dedicatória. Nasser largou o telefone fora do gancho e, curioso, correu à procura de seu exemplar. Levou um susto ao deparar com a frase:

"Ao irmão David Nasser, oferece Emmanuel".

"Que negócio é esse, Manzon, alguém revelou nossa identidade?

"O fotógrafo e o motorista também foram pegos de surpresa. Diante do mistério, os três fizeram um pacto de silêncio. A reportagem saiu sem aquele episódio.

"Segundo Nasser, a verdade, em jornalismo, era menos importante do que a verossimilhança."

Marcel Souto Maior

As vidas de Chico Xavier

2ª edição revista e ampliada.

São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003

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