quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Travessia

"O corpo, freqüentemente, sofre mais durante a vida que no momento da morte; neste, a alma nada sente. Os sofrimentos que às vezes se provam no momento da morte são um prazer para o Espírito, que vê chegar o fim do seu exílio. (...) a alma se desprende gradualmente e não escapa como um pássaro cativo subitamente libertado. Os dois estados se tocam e se confundem, de maneira que o Espírito se desprende pouco apouco dos seus liames; estes se soltam e não se rompem."
 
O Livro dos Espíritos
Separação da Alma e do Corpo
Itens 154/155
 

 
A  morte  de  Ivan  Ilitch
de  Leon  Tolstói
 

Ivan Ilitch é um juiz que vive na Rússia czarista da segunda metade do século XIX. Ele é o personagem central de um conto de León Tolstói (2001) que tem como tema a experiência do adoecer  e do morrer, a partir da vivência do enfermo. I. Ilitch levava uma vida burguesa, dividindo seu tempo  entre o trabalho, o convívio com a família  e  o  jogo  regular  com  os  amigos.  Uma  vida  sem  muitos  sobressaltos  ou dificuldades, até que um dia começa a sentir uma dor no baixo ventre, do lado direito. A dor, que parecia algo passageiro e sem importância, não só persiste como vai aumentado com o passar do tempo. E, resiste aos tratamentos médicos da época. Junto com a dor, o emagrecimento e uma  crescente deterioração física. Progressivamente, Ivan Ilitch vai tomando consciência da gravidade do  seu quadro  e do quanto sua antiga vida  vai ficando cada vez mais para trás. À medida que o conto avança, somos arrastados, por Tolstói,  a  compartilhar  o  sofrimento  do  personagem.  Sem  nos  darmos  contas,  aos poucos começamos a olhar os outros personagens, o médico, a família e os amigos, com os olhos do doente. Tolstói, com sua genialidade, nos leva a ocupar "o lugar do doente". A experimentar "estar doente".

 

Este lugar do doente, que vamos compartilhando progressivamente, é um lugar terrível por várias razões que se alimentam e se reforçam mutuamente, criando um campo de sofrimento insuportável. Primeiro, pela dor física contínua e crescente, sem trégua. Depois, pela perda de autonomia. A rotina do trabalho que não mais é possível manter, os jogos com os amigos que vão escasseando e, o convívio com a família, que já não era muito bom, vai se tornando cada vez mais distante. Perda de controle sobre o modo de viver a vida. Mas o sofrimento de Ivan Ilitch não pára por aqui. Além da dor e da perda da autonomia, o doente vive o tormento do medo da morte. A morte  vai assumindo  uma  materialidade  tal  que,  em  dado  momento,  passa  a  ser  quase  uma presença  física.  Ele  passa  a  conviver  com  a  presença  da  morte.  Dor,  perda  de autonomia, medo da morte vividos na mais absoluta sensação de desamparo e solidão.

 

Mas, o pior de tudo, é a incomunicabilidade com os outros. Ninguém parece entender o que ele está vivendo. Os médicos, porque insistem em um linguajar técnico, preocupados em encontrar um  diagnóstico da doença e a terapia correspondente. A mulher e os filhos expressam pena e culpa ao vê-lo naquela situação. Ele sabe que é um estorvo para a família. Mas, o pior, é que ele sabe que todos mentem, que todos fingem não ver o agravamento da sua situação. Seus encontros com o espelho são dramáticos. Quase insuportáveis. A imagem que vê em nada faz lembrar o homem que era antes. Ele inveja a vitalidade e autonomia dos que não estão doentes. Um mundo que lhe parece cada dia mais distante.

 

Tal é a situação quando entra um novo personagem em cena. Guerássim, um serviçal,  mujique (o camponês russo), analfabeto, é designado para ajudar o patrão quando ele já não consegue mais se cuidar sozinho nas atividades diárias. Guerássim faz a higiene de I. Ilitch quando ele vai ao banheiro, ajuda-o a se levantar e se acomodar na cadeira ou na cama, lhe traz a comida, ajuda no banho e no desempenho de todas as atividades cotidianas corriqueiras. Atividades que nos parecem tão triviais, mas que, quando estamos doentes, debilitados ou com alguma incapacidade física ou limitação de movimentos,  nos  parecem  tão   dramáticas.  Tão  dramaticamente  impossíveis.  Tão denunciadoras da nossa perda de autonomia.

 

Ivan Ilitch descobriu, por conta própria, que deixar as pernas em posição mais alta, descansando sobre uma almofada, lhe traz algum alívio para a dor. Um dia, como a dor não havia cedido o bastante com a elevação proporcionada pela almofada, pensa em experimentar usar duas. Pede a  Guerássim que levante suas pernas para colocar mais uma. O empregado atende ao seu pedido. Ilitch descobre, então, que a dor praticamente desaparece quando as pernas são levantadas pelo serviçal. Ele  pede que Guerássim mantenha as pernas bem erguidas mais um pouco. Este, experimenta pousar ou apóia- las em seu ombro. A sensação de alívio vivida por Ilitch é maravilhosa. Como se fora uma  primeira "intervenção terapêutica" eficaz. Algo que, mesmo paliativamente, lhe trazia alguma trégua em relação à dor.

 

A cena passa a se repetir nos dias subseqüentes. O ato de colocar as pernas de Ilitch no ombro de Guerássim vai construindo uma intimidade inimaginável entre um senhor  e  um  servo  na  Rússia  czarista  do  século  XIX.  Em  um  dado  momento,  o empregado passa a tratá-lo por tu. Um  dia, Ilitch preocupado com o desconforto do servo, pergunta-lhe se ele não se cansava e se não se  importava de manter as pernas naquela  posição  durante  toda  a  noite.  Diante  de  tal  interrogação,  Guerássim  lhe responde: "Se não estivesses doente, seria outra conversa; mas, no estado em que estás, por que não te ajudar um pouco?". Progressivamente, o servo dava mostras de ser o único  que  não  mentia  e  tudo  indicava  que  também  era  o  único  a  compreender plenamente o que se passava e  não considerava necessário oculta-lo. "Singelamente condoia-se do patrão tão fraco e esquelético". Um dia, incitado a ir descansar, disse com toda franqueza: "todos nós temos que morrer um dia. Por que não me sacrificar um pouco agora?". Disse, explicitamente, que não considerava um fardo tratar de um moribundo e confiava que mereceria o mesmo quando chegasse a sua vez. Pela primeira vez,  alguém  não  lhe  mentia.  "O  que  atormentava  Ivan  Ilitch  era  que  ninguém  o lastimasse conforme gostaria de ser lastimado". Como diz Tolstói e, aqui vale a pena reproduzir  integralmente  para  que  o  leitor  tenha  uma  dimensão  da  sua  percepção, "momento havia, depois de demorados sofrimentos, em que queria, acima de tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, ver-se tratado como se fosse uma criança doente. Queria ser acarinhado, mimado, beijado, tal com se faz com as crianças. Sabia que era um juiz importante, dono de uma barba grisalha e que por isso mesmo o que ambicionava era impossível, mas ainda  assim ambicionava. E no comportamento de Guerássim para com ele havia qualquer coisa próxima  daquilo que queria e de tal forma sentia-se um pouco confortado".

 

A doença progride implacavelmente e os médicos cada vez mais impotentes para encontrar uma solução. A mulher relata ao doutor que Ilitch é rebelde ao tratamento e que "fica numa posição que  positivamente não pode lhe fazer bem: de pernas para cima". Ao que, responde o médico: "Que  vamos fazer! Os doentes têm mania de inventar uma infinidade de asneiras. Devemos desculpá-los". O conto termina com o momento da morte, vivida na perspectiva do doente. Um momento de  libertação dos medos  e de alívio  da dor,  "e  de repente,  percebeu com nitidez  que aquilo  que o atormentara e o oprimia se ia dissipando, escoando para fora de seu por todos os lados ao mesmo tempo".

Trecho extraído da monografia

A  morte  de  Ivan  Ilitch  de  Leon  Tolstói

Elementos  para  se  pensar  as múltiplas dimensões da gestão do cuidado

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio

Departamento de Medicina Preventiva

Universidade Federal de São Paulo

Fonte: Secretaria de Saúde da Cidade de São Paulo

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