Lembrai-vos do manuscrito que haveis deixado?
Qual é a vossa opinião atual sobre esse manuscrito?
Pensais, todavia, que essa obra poderia fazer uma revolução na ciência?
Poderíeis, como Espírito, corrigir e acabar esse manuscrito?
Ivan Ilitch é um juiz que vive na Rússia czarista da segunda metade do século XIX. Ele é o personagem central de um conto de León Tolstói (2001) que tem como tema a experiência do adoecer e do morrer, a partir da vivência do enfermo. I. Ilitch levava uma vida burguesa, dividindo seu tempo entre o trabalho, o convívio com a família e o jogo regular com os amigos. Uma vida sem muitos sobressaltos ou dificuldades, até que um dia começa a sentir uma dor no baixo ventre, do lado direito. A dor, que parecia algo passageiro e sem importância, não só persiste como vai aumentado com o passar do tempo. E, resiste aos tratamentos médicos da época. Junto com a dor, o emagrecimento e uma crescente deterioração física. Progressivamente, Ivan Ilitch vai tomando consciência da gravidade do seu quadro e do quanto sua antiga vida vai ficando cada vez mais para trás. À medida que o conto avança, somos arrastados, por Tolstói, a compartilhar o sofrimento do personagem. Sem nos darmos contas, aos poucos começamos a olhar os outros personagens, o médico, a família e os amigos, com os olhos do doente. Tolstói, com sua genialidade, nos leva a ocupar "o lugar do doente". A experimentar "estar doente".
Este lugar do doente, que vamos compartilhando progressivamente, é um lugar terrível por várias razões que se alimentam e se reforçam mutuamente, criando um campo de sofrimento insuportável. Primeiro, pela dor física contínua e crescente, sem trégua. Depois, pela perda de autonomia. A rotina do trabalho que não mais é possível manter, os jogos com os amigos que vão escasseando e, o convívio com a família, que já não era muito bom, vai se tornando cada vez mais distante. Perda de controle sobre o modo de viver a vida. Mas o sofrimento de Ivan Ilitch não pára por aqui. Além da dor e da perda da autonomia, o doente vive o tormento do medo da morte. A morte vai assumindo uma materialidade tal que, em dado momento, passa a ser quase uma presença física. Ele passa a conviver com a presença da morte. Dor, perda de autonomia, medo da morte vividos na mais absoluta sensação de desamparo e solidão.
Mas, o pior de tudo, é a incomunicabilidade com os outros. Ninguém parece entender o que ele está vivendo. Os médicos, porque insistem em um linguajar técnico, preocupados em encontrar um diagnóstico da doença e a terapia correspondente. A mulher e os filhos expressam pena e culpa ao vê-lo naquela situação. Ele sabe que é um estorvo para a família. Mas, o pior, é que ele sabe que todos mentem, que todos fingem não ver o agravamento da sua situação. Seus encontros com o espelho são dramáticos. Quase insuportáveis. A imagem que vê em nada faz lembrar o homem que era antes. Ele inveja a vitalidade e autonomia dos que não estão doentes. Um mundo que lhe parece cada dia mais distante.
Tal é a situação quando entra um novo personagem em cena. Guerássim, um serviçal, mujique (o camponês russo), analfabeto, é designado para ajudar o patrão quando ele já não consegue mais se cuidar sozinho nas atividades diárias. Guerássim faz a higiene de I. Ilitch quando ele vai ao banheiro, ajuda-o a se levantar e se acomodar na cadeira ou na cama, lhe traz a comida, ajuda no banho e no desempenho de todas as atividades cotidianas corriqueiras. Atividades que nos parecem tão triviais, mas que, quando estamos doentes, debilitados ou com alguma incapacidade física ou limitação de movimentos, nos parecem tão dramáticas. Tão dramaticamente impossíveis. Tão denunciadoras da nossa perda de autonomia.
Ivan Ilitch descobriu, por conta própria, que deixar as pernas em posição mais alta, descansando sobre uma almofada, lhe traz algum alívio para a dor. Um dia, como a dor não havia cedido o bastante com a elevação proporcionada pela almofada, pensa em experimentar usar duas. Pede a Guerássim que levante suas pernas para colocar mais uma. O empregado atende ao seu pedido. Ilitch descobre, então, que a dor praticamente desaparece quando as pernas são levantadas pelo serviçal. Ele pede que Guerássim mantenha as pernas bem erguidas mais um pouco. Este, experimenta pousar ou apóia- las em seu ombro. A sensação de alívio vivida por Ilitch é maravilhosa. Como se fora uma primeira "intervenção terapêutica" eficaz. Algo que, mesmo paliativamente, lhe trazia alguma trégua em relação à dor.
A cena passa a se repetir nos dias subseqüentes. O ato de colocar as pernas de Ilitch no ombro de Guerássim vai construindo uma intimidade inimaginável entre um senhor e um servo na Rússia czarista do século XIX. Em um dado momento, o empregado passa a tratá-lo por tu. Um dia, Ilitch preocupado com o desconforto do servo, pergunta-lhe se ele não se cansava e se não se importava de manter as pernas naquela posição durante toda a noite. Diante de tal interrogação, Guerássim lhe responde: "Se não estivesses doente, seria outra conversa; mas, no estado em que estás, por que não te ajudar um pouco?". Progressivamente, o servo dava mostras de ser o único que não mentia e tudo indicava que também era o único a compreender plenamente o que se passava e não considerava necessário oculta-lo. "Singelamente condoia-se do patrão tão fraco e esquelético". Um dia, incitado a ir descansar, disse com toda franqueza: "todos nós temos que morrer um dia. Por que não me sacrificar um pouco agora?". Disse, explicitamente, que não considerava um fardo tratar de um moribundo e confiava que mereceria o mesmo quando chegasse a sua vez. Pela primeira vez, alguém não lhe mentia. "O que atormentava Ivan Ilitch era que ninguém o lastimasse conforme gostaria de ser lastimado". Como diz Tolstói e, aqui vale a pena reproduzir integralmente para que o leitor tenha uma dimensão da sua percepção, "momento havia, depois de demorados sofrimentos, em que queria, acima de tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, ver-se tratado como se fosse uma criança doente. Queria ser acarinhado, mimado, beijado, tal com se faz com as crianças. Sabia que era um juiz importante, dono de uma barba já grisalha e que por isso mesmo o que ambicionava era impossível, mas ainda assim ambicionava. E no comportamento de Guerássim para com ele havia qualquer coisa próxima daquilo que queria e de tal forma sentia-se um pouco confortado".
A doença progride implacavelmente e os médicos cada vez mais impotentes para encontrar uma solução. A mulher relata ao doutor que Ilitch é rebelde ao tratamento e que "fica numa posição que positivamente não pode lhe fazer bem: de pernas para cima". Ao que, responde o médico: "Que vamos fazer! Os doentes têm mania de inventar uma infinidade de asneiras. Devemos desculpá-los". O conto termina com o momento da morte, vivida na perspectiva do doente. Um momento de libertação dos medos e de alívio da dor, "e de repente, percebeu com nitidez que aquilo que o atormentara e o oprimia se ia dissipando, escoando para fora de seu por todos os lados ao mesmo tempo".
Trecho extraído da monografia
A morte de Ivan Ilitch de Leon Tolstói
Elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado
Luiz Carlos de Oliveira Cecilio
Departamento de Medicina Preventiva
Universidade Federal de São Paulo