quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Filosofia Moral

Os trechos a seguir foram extraídos de um artigo escrito por Allan Kardec na Revista Espírita de maio de 1859, em resposta a outro artigo de um sacerdote católico, no qual este, entre outras considerações, definia o Espiritismo como mais uma religião.


 
Senhor abade,
 
(...)
 
Intitulais vosso artigo: "Uma nova religião em Paris".

Admitindo que tal fosse, com efeito, o caráter do Espiritismo, aí haveria um primeiro erro, considerando-se que ele está longe de circunscrever-se a Paris. Conta milhões de aderentes espalhados nas cinco partes do mundo e Paris não foi o foco primitivo. Em segundo lugar, o Espiritismo é uma religião? Fácil é demonstrar o contrário.
 
O Espiritismo está baseado na existência de um mundo invisível, formado de seres incorpóreos que povoam o espaço e que nada mais são do que as almas dos que viveram na Terra ou em outros globos, onde deixaram os seus invólucros materiais. São esses seres que havíamos dado, ou melhor, que se deram o nome de Espíritos. Esses seres, que nos rodeiam incessantemente, exercem sobre os homens, mau grado seu, uma grande influência; desempenham um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. O Espiritismo, pois, está em a Natureza e pode-se dizer que, numa certa ordem de idéias, é uma força, como a eletricidade também o é sob diferente ponto de vista, assim como a gravitação universal, igualmente.
 
Ele nos desvenda o mundo dos invisíveis, como o microscópio nos desvendou o mundo dos infinitamente pequenos, cuja existência nem suspeitávamos. Os fenômenos cuja fonte é esse mundo invisível devem ter-se produzido e se produziram em todos os tempos, razão por que a história de todos os povos lhes faz menção. Apenas os homens, em sua ignorância, os atribuíram a causas mais ou menos hipotéticas e, a propósito, deram livre curso à imaginação, como o fizeram com todos os fenômenos cuja natureza só imperfeitamente conheciam. O Espiritismo, melhor observado desde que se vulgarizou, vem lançar luz sobre uma multidão de problemas até aqui insolúveis ou mal resolvidos. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião, e a prova disso é que conta, entre seus aderentes, homens de todas as crenças, e que nem por isso renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque essas idéias são incompatíveis com as observações espíritas. O Espiritismo, pois, repousa sobre princípios gerais, independentes de toda questão dogmática. É verdade que tem conseqüências morais, como todas as ciências filosóficas. Essas conseqüências são no sentido do Cristianismo, porque, de todas as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira essência.
 
O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode fazer uma religião de suas opiniões e interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande distância e creio que seria imprudência seguir tal idéia. Em resumo, o Espiritismo se ocupa da observação dos fatos e não das particularidades de tal ou qual crença, da pesquisa das causas, da explicação que esses fatos podem dar de fenômenos conhecidos, assim na ordem moral como na ordem física, e não impõe nenhum culto aos seus partidários, como a astronomia não impõe o culto dos astros, nem a pirotecnia o culto do fogo. Ainda mais: do mesmo modo que o sabeísmo nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na Antigüidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo com mais critério. Ele nos põe em guarda contra os sistemas errôneos, frutos da ignorância, e a própria religião nele pode haurir a prova palpável de muitas verdades contestadas por certas opiniões. Eis por que, contrariando a maior parte das ciências filosóficas, um dos seus efeitos é reconduzir às idéias religiosas aqueles que se extraviaram num cepticismo exagerado.
 
(...)
 
Terminais vosso artigo chamando a atenção dos católicos para o mal que o Espiritismo pode fazer às almas. Se as conseqüências do Espiritismo fossem a negação de Deus, da alma, de sua individualidade após a morte, do livre-arbítrio do homem, das penas e recompensas futuras, seria uma doutrina profundamente imoral. Longe disso, ele prova, não pelo raciocínio, mas pelos fatos, essas bases fundamentais da religião, cujo inimigo mais poderoso é o materialismo. Mais ainda: por suas conseqüências ensina a suportar com resignação as misérias desta vida; acalma o desespero; ensina os homens a se amarem como irmãos, conforme os divinos preceitos de Jesus. Se soubésseis, como eu, quantos incrédulos endurecidos ele fez renascer; quantas vítimas arrancou ao suicídio pela perspectiva da sorte reservada aos que abreviam a vida, contrariando a vontade de Deus; quantos ódios acalmou, quantos inimigos aproximou! É a isso que chamais fazer mal às almas? Não; não podeis pensar assim. Prefiro supor que, se o conhecêsseis melhor, o julgaríeis de outra maneira. Direis que a religião pode fazer tudo isso. Longe de mim contestá-lo. Mas acreditais que teria sido melhor, para aqueles que ela encontrou rebeldes, permanecerem numa incredulidade absoluta? Se o Espiritismo triunfou sobre eles, se lhes tornou claro o que antes era obscuro, evidente o que lhes parecia duvidoso, onde o mal? Para mim, em lugar de perder almas, ele as salvou.
 
Allan Kardec
Paris, 1859

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