sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O Mordomo Infiel

"Dizia Jesus também aos seus discípulos: Havia certo homem rico, que tinha um mordomo; e este foi acusado perante ele de estar dissipando os seus bens.
 
"Chamou-o, então, e lhe disse: Que é isso que ouço dizer de ti? Presta contas da tua mordomia; porque já não podes mais ser meu mordomo.
 
"Disse, pois, o mordomo consigo: Que hei de fazer, já que o meu senhor me tira a mordomia? Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha. Agora sei o que vou fazer, para que, quando for desapossado da mordomia, me recebam em suas casas.
 
"E chamando a si cada um dos devedores do seu senhor, perguntou ao primeiro: Quanto deves ao meu senhor? Respondeu ele: Cem cados de azeite. Disse-lhe então: Toma a tua conta, senta-te depressa e escreve cinqüenta. Perguntou depois a outro: E tu, quanto deves? Respondeu ele: Cem coros de trigo. E disse-lhe: Toma a tua conta e escreve oitenta.
 
"E louvou aquele senhor ao injusto mordomo por haver procedido com sagacidade; porque os filhos deste mundo são mais sagazes para com a sua geração do que os filhos da luz.
 
"Eu vos digo ainda: Granjeai amigos por meio das riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos.
 
Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; quem é injusto no pouco, também é injusto no muito. Se, pois, nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos confiará as verdadeiras? E se no alheio não fostes fiéis, quem vos dará o que é vosso?"
 
Lucas, capítulo 16
 

 
ATO DE CARIDADE
A.C.
 
Em nossa reunião da noite de 7 de Junho de 1956, nossos Benfeitores trouxeram-nos ao recinto o Espírito de A. C., que nos contou a sua significativa experiência, aqui transcrita.
 
Oxalá possa ela acordar-nos para mais ampla exatidão, no desempenho de nossos compromissos, na esfera da caridade que, realmente, seja onde for e com quem for, é nosso simples dever.
 
Espiritismo...
 
Sou espírita...
 
Fora da caridade não há salvação...
 
Maravilhosas palavras!...
 
Contudo, quase sempre chegamos a perceber-lhes o divino significado depois da morte, com o desapontamento de uma pessoa que perdeu o trem para uma viagem importante, guardando, inutilmente, o bilhete na mão.
 
Utilizei-me de um corpo físico durante cinqüenta e cinco anos, na derradeira romagem física.
 
Era casado.
 
Residia no Rio de Janeiro.
 
Mantinha a esposa e duas filhas.
 
Desempenhava a função de operoso corretor de imóveis.
 
E era espírita à maneira de tantos...
 
Nunca me interessei por qualquer meditação evangélica.
 
Não cheguei a conhecer patavina da obra de Allan Kardec.
 
Entretanto, intitulava-me espírita...
 
Freqüentava sessões.
 
Aplaudia conferencistas.
 
Acompanhava as orações dos encarnados e as preleções dos desencarnados, com a cabeça pendida em reverência.
 
Todavia, encerrados os serviços espirituais, tinha sempre afeiçoados no recinto, a quem oferecer terras e casas, a quem vender casas e terras...
 
E o tempo foi passando.
 
Cuidava devotadamente do meu conforto doméstico.
 
Meu rico dinheiro era muito bem empregado.
 
Casa bem posta, mesa farta, tudo do bom e do melhor...
 
Às vezes, um companheiro mais persistente na fé convidava-me a atenção para o culto do Evangelho no lar.
 
Mas eu queria lá saber disso?...
 
A meu ver, isso daria imenso trabalho.
 
Minha mulher dedicava-se à vida que lhe era própria.
 
Minhas filhas deveriam crescer tão livremente como desejassem, e qualquer reunião de ordem moral, em minha casa, era indiscutìvelmente um tropeço ao meu bem-estar.
 
E o tempo foi passando...
 
Fui detentor de uma bronquite que me recebia a melhor enfermagem.
 
Era o dodói de meus dias.
 
Se chamado a qualquer atividade de beneficência, era ela o meu grande escolho.
 
No verão, estimava a sombra e a água fresca.
 
No inverno, preferia o colchão de mola e o cobertor macio.
 
E o tempo foi passando...
 
Sessões semanais bem freqüentadas...
 
Orações bem ouvidas...
 
Negócios bem feitos...
 
Aos cinqüenta, e cinco anos, porém, um edema do pulmão arrebatou-me o corpo.
 
Francamente, a surpresa foi grande.
 
Apavorado, compreendi que eu não merecia o interesse de quem quer que fosse, a não ser das entidades galhofeiras que me solicitaram a presença em atividades criminosas que não condiziam com a minha vocação.
 
Entre o Centro Espírita e o lar, minha mente conturbada passou a viver uma experiência demasiado estranha...
 
Em casa, outros assuntos não surgiam a meu respeito que não fossem o inventário para a indispensável partilha dos bens.
 
E, no Centro, as entidades elevadas e amigas surgiam tão intensivamente ocupadas aos meus olhos, que de todo não me era possível qualquer interferência, nem mesmo para fazer insignificante petitório.
 
Para ser verdadeiro, não havia cultivado a oração com sentimento e, por isso mesmo, passei a ser uma espécie de estrangeiro em mim próprio, ilhado no meu grande egoísmo.
 
Ausentando-me do santuário de minha suposta fé, interiormente desapontado, encontrava o circulo doméstico, e, por vezes, ensaiava, na calada da noite, surpreender a companheira com meus apelos ; entretanto, nos primeiros tentames senti tamanha repulsão da parte dela, a exprimir-se na gritaria mental com que me induzia a procurar os infernos, que eu, realmente, desisti da experiência.
 
Minhas filhas, visitadas por minha presença, não assinalavam, de modo algum, qualquer pensamento meu, porquanto se encontravam profundamente engolfadas na idéia da herança.
 
Não havia outra recordação para o carinho paterno que não fosse à herança... a herança... a herança...
 
Passei a viver, assim, dentro de casa, a maneira de um cão batido por todos, porque, francamente, não dispunha de outro clima que me atraísse.
 
Apenas o calor de meu lar sossegava-me as ânsias.
 
Alguns meses decorreram sobre a difícil posição em que me encontrava.
 
Alimentava-me e dormia nas horas certas, copiando os meus antigos hábitos.
 
Certa noite, porém, tive tanta sede de espiritualidade, tanto anseio de confraternização que, vagueando na rua, procurei o Alto da Tijuca para meditar, chorar e penitenciar-me...
 
Minha lágrimas, contudo, eram dessa vez tão sinceras que alguém se compadeceu de mim.
 
Surgiu-me à frente um irmão dos infortunados e, com muita bondade, reconduziu-me ao velho templo espírita a que antigamente me afeiçoara.
 
Era noite avançada, mas o edifício estava repleto.
 
Um mensageiro do Plano Superior dirigia grande assembléia.
 
E o enfermeiro que, paciente, me encaminhara, esclareceu-me que ali se verificava o encontro de um benfeitor do Alto com os desencarnados que se caracterizavam por mais ampla sede de luz.
 
Esse Instrutor penetrava-nos a consciência, anotando o mérito ou o demérito de que éramos portadores para demandar a suspirada renovação de clima.
 
Muitos irmãos eram ouvidos pessoalmente.
 
Após duas horas de expectativa, chegou minha vez.
 
Pelo olhar daquele Espírito extremamente lúcido, deduzi que nenhum pensamento meu lhe seria ocultado.
 
Aqueles olhos varriam os mais fundos escaninhos do meu ser.
 
Anotei meu problema.
 
Desejava mudança.
 
Ansiava melhorar minha triste situação.
 
Perguntou-me o Instrutor qual havia sido o meu modo de vida.
 
Creio que ele não tinha necessidade de indagar coisa alguma, no entanto, a casa acolhia numerosos necessitados e, a meu ver, a lição administrada a qualquer de nós deveria servir a outrem.
 
Aleguei, preocupado, que havia protegido corretamente a família terrestre e que havia preservado a minha saúde com segurança.
 
Ele sorriu e respondeu que semelhantes misteres eram comuns aos próprios animais.
 
Pediu que, de minha parte, confessasse algum ato que pudesse enobrecer as minhas palavras, algo que lhe fosse apresentado como justificativa de auxilio às minhas pretensões de trabalho, melhoria e ascensão.
 
Minha memória vasculhou os anos vividos, inutilmente...
 
Não encontrei um ato sequer, capaz de alicerçar-me a esperança.
 
Não que o serviço de corretor de imóveis seja indigno, mas é que eu capitalizava o dinheiro haurido em minhas lides profissionais, qual terra seca coletando a água da chuva: chupava... chupava... chupava... sem restituir gota alguma.
 
Depois de agoniados instantes, lembrei-me de que em certa ocasião encontrara três amigos de nosso templo, na Praça da Bandeira, a insistirem comigo para que lhes acompanhasse a jornada caridosa até um lar humilde, na Favela do esqueleto.
 
Fiz tudo para desvencilhar-me do convite que me pareceu aborrecido e imprudente.
 
Mas o grupo, que se constituía de uma senhora e dois companheiros, desenvolveu sobre mim tamanho constrangimento afetivo, que não tive outro recurso senão atender à carinhosa exigência.
 
Dai a alguns minutos, varávamos estreita choupana de lata velha, onde fomos defrontados por um quadro desolador.
 
Pobre mulher tuberculosa agonizava.
 
Nosso conjunto, entretanto, logo à chegada, fragmentou-se, pois a companheira foi convocada pelo esposo ao retorno imediato e o outro amigo deu-se pressa em voltar, pretextando serviço urgente.
 
Não pude, todavia, imitar-lhes a decisão.
 
Os olhos da enferma eram de tal modo suplicantes que uma força irresistível me fez dobrar os joelhos para socorrê-la no leito, mal amanhado no chão.
 
Perguntei-lhe o nome.
 
Gaguejou... gaguejou... e informou chamar-se Maria Amélia da Conceição.
 
Seus familiares, uma velha e dois meninos que se assemelhavam a cadáveres ambulantes, não lhe podiam prestar auxílio.
 
Inclinei-me e coloquei-lhe a cabeça suarenta nos braços, tentando suavizar-lhe a dispnéia ; no entanto, depois de alguns minutos, a infeliz, numa golfada de sangue, entregou-se à morte.
 
Senti-me sumamente contrafeito.
 
Mas para ver-me livre de quadro tão deprimente, pela primeira vez arranquei da bolsa uma importância mais farta, transferindo-a para as mãos da velhinha, com vistas aos funerais.
 
Afastei-me, irritadiço.
 
E, antes da volta a casa, procurei um hotel para um banho de longo curso, com desinfetante adequado.
 
E, no outro dia, consultei um médico sobre o assunto, com receio de contágio...
 
O painel que o tempo distanciara assomou-me à lembrança, mas tentei sufocá-la na minha imaginação, pois aquele era um ato que eu havia levado a efeito constrangidamente, sem mérito algum, de vez que o socorro a Maria Amélia da Conceição fora simplesmente para mim um aborrecimento indefinível...
 
Contudo, enquanto a minha mente embatucada não conseguia resposta, desejando asfixiar a indesejável reminiscência, alguém avançou da assembléia e abraçou-me.
 
Esse alguém era a mesma mulher da triste vila do Esqueleto.
 
Maria Amélia da Conceição vinha em meu socorro.
 
Pediu ao benfeitor que nos dirigia recompensasse o meu gesto, notificando que eu lhe havia ofertado pensamentos de amor na extrema hora do corpo e que lhe havia doado, sobretudo, um enterro digno com o preço de minha dedicação fraternal, como se a fraternidade, algum dia, houvesse andado em minhas cogitações...
 
As lágrimas irromperam-me dos olhos e, desde aquela hora, para felicidade minha, retornei ao trabalho, sendo investido na tarefa de amparar os agonizantes, tarefa essa em cujo prosseguimento venho encontrando abençoadas afeições, reerguendo-me para luminoso porvir.
 
Bastou um simples ato de amor, embora constrangidamente praticado, para que minha embaraçosa inquietação encontrasse alívio.
 
É por isso que, trazido à vossa reunião de ensinamento e serviço, sou advertido a contar-vos minha experiência dolorosa e simples, para reafirmar-vos o imperativo de sermos espíritas pelo coração e pela alma, pela vida e pelo entendimento, pela teoria e pela prática, porque em verdade, como espíritas, à luz do Espiritismo Cristão, podemos e devemos fazer muito na construção sublime do bem.
 
Por esse motivo, concluo reafirmando:
 
Espiritismo...
 
Sou espírita...
 
Fora da caridade não há salvação...
 
Maravilhosas palavras!...
 
Que Jesus nos abençoe.

Francisco Cândido Xavier
Vozes do Grande Além
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